quinta-feira, 24 de março de 2022

coletivo macunaíma de cultura


Santíssima trindade


Quando fui ao Espírito Santo
vi três linda meninas
me sorrindo em aquarela

no entanto não sou santo
muito menos era de anjo
o sorriso em tua bocas
aquele olhar nos olhos delas

nas tuas íris/retinas
era ironia/sarcasmo
com a minha cara de fome
embaixo daquela janela

Federico Baudelaire

www.braziliricapereira.blogspot.com



poeta


por um poema
que desconcerte
entorte

desconstrua
desconforte

com linguagem muito louca
arrombe a porta
dos céus
       da tua boca

arranhe os dentes
da loba
arrebanhe os cordeiros
no pasto
e lhes ensine
a subverter
as ordens do pastor

assumo o risco
não sou o demo
nem corisco
eu sou cantor

 

Artur Gomes Fulinaíma

www.arturfulinaima.blogspot.com




 ancestral


há muito tempo não recebo cartas de ninguém
mas não rezo padre nossos
simplesmente para dizer amém
já fui católico rezei terços ladainhas
acompanhei a procissão dos afogados
na Tapera para soletrar a palavra Cacomanga
e entender que o barro da cerâmica
trago grudado na minha íris retina
meu batismo de fogo foi numa Santa Cecília
entre víboras e serpentes
mordi a hóstia do padre
sua saia preta me levou ao pânico
de sonhar com juízes e hoje saber o que são
minha África são os olhos negros
de Madame Satã
na língua tenho uma sede felina
na carne essa fome pagã
sou um homem comum
filho de Ogum com Iansã

 

Relatório

I

na sala ficaram cacos de pratos
espalhados pelo chão. pedaços do corpo retidos
entre o corredor, após o interrogatório.
um cheiro forte de pólvora e mijo
misturados a dois ou três dias sem banho
depois de feito sexo.
só o fogo da verdade exalando odor e raiva
quando em verde, conspiravam contra nós.

em são cristóvão o gasômetro vomitava
um gás venoso nos pulmões já cancerados
nos quartéis da cavalaria.

II

me lembro.
o sentimento era náuseas, nojo, asco,
quando as botas do carrasco
bateram nos meus ombros com os cascos.

jamais me esquecerei o nome do bandido
escondido atrás dos tanques
e
se chamavam:
Dragões da Independência
e a gente ali na inocência.
comendo estrumes. engolindo em seco
as feridas provocadas por esporas.
aguentando o coice, o cuspe,
e
a própria ira
dos animais de fardas
batendo patas sobre nós.

III

com a carne em postas sobre a mesa,
o couro cru, o coração em desespero,
o sangue fluindo pelos poros, pelos pelos.

eu faço aqui
meditações sobre o presente
re cri ando
meu futuro.
tendo o corpo em cada porta
e a cara em cada furo.

tentando só/erguer
as condições pra ser humano
visto que tornou-se urbano
e re-par-tiu
se
em mil pedaços
visto que do sobre-humano
restou cabeça, pés, e braços.


Couro Cru & Carne Viva – 1987




dia d

,
furai
a pele das partículas dos poemas
viemos das gerações neoabstratas
assistindo a belos filmes de Godart
inertes em películas de Truffaut
bebendo apocalipses de Fellini
em tropicâncer genocidas de terror

, sangrai a tela realista dos cinemas
na pele experimental do caos urbano,
tragai
Dali pele entre/ossos
Glauber rugindo enTridentes
na língua do veneno o gozo das serpentes
nos frascos insensíveis de isopor

,
caímos no poder do vil orgânico
entramos no curral dos artefatos
na porta de entrada os artifícios
na jaula sem saída os mesmos pratos

 

Conkretude Versus ConkrEreções – 1994

 

todos os dias
acendo minhas lamparinas
e meus lampiões
o pavio aceso
afasta as aves de rapina
e o calor das chamas
aquece os corações



Subversiva


A poesia
Quando chega
Não respeita nada.

Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
De qualquer de seus abismos

Desconhece o Estado e a Sociedade Civil
Infringe o Código de Águas
Relincha

Como puta
Nova
Em frente ao Palácio da Alvorada.

E só depois
Reconsidera: beija
Nos olhos os que ganham mal
Embala no colo
Os que têm sede de felicidade
E de justiça.

E promete incendiar o país.




 

POEMA OBSCENO

Façam a festa
cantem e dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo
como a miséria brasileira

Não se detenham:
façam a festa
Bethânia Martinho
Clementina
Estação Primeira de Mangueira
Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a nossa festa
enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)

Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país
— e espreitam.



Ferreira Gullar
in Na Vertigem do Dia 1980

 Artur Gomes

Fulinaíma MultiProjetos

fulinaima@gmail.com

Coletivo Macunaíma de Cultura

www.coeltivomacunaimadecultura.blogspot.com

(22)99815-1268 - whatsapp


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