NÓS
Fernando Leite Fernandes
Senta,
Vai alta a madrugada
E não demora, a manhã vai entrar
Pelas frestas da casa,
Como leite derramado.
Faz tempo que dividimos a comida,
A roupa limpa,
Que contabilizamos dívidas
E regamos com zelo de parteiras,
A flor do nosso sentimento
- rara orquídea multicor –
Vem, senta,
As crianças dormem de janelas
abertas,
Não há perigo algum,
Podemos arriar nossas espadas,
Afrouxar nossas defesas
Por instantes,
Pelo menos, até que o dia reponha
suas armadilhas.
Olha, as nuvens são alfaias,
Mobílias do céu.
Temos um Deus nômade
Que nos defende à distância
E é impressionante essa galáxia sobre
nós,
Enquanto contamos o cobre
que comprará arroz e trigo
Quando amanhecer.
- há muito que nos alimentamos
De aurora e pão –
Senta, esquece a lâmina do futuro,
É hora de içar as imensas velas do
amor,
Espalhar no chão nossas roupas
íntimas,
Mergulhar no delírio,
O mar que trazemos escondido
Há tanto tempo.
obs.: poesia
vencedora do I FestCampos de Poesia Falada - 2000 - projeto de poesia criado
em 1999 por Artur Gomes na Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, que volta
a coordená-lo neste ano de 2023 em sua XXIIIª Edição.
Camões/Lampião
(Sérgio de Castro Pinto)
1.
camões ao habitar-se
no olho cego
sentia-se íntimo,
mais interno
que o habitar-se
no olho aberto.
2.
lampião ao habitar-se
nos dois olhos
a eles dividia:
o olho aberto matava
e o outro se arrependia.
3.
camões ao habitar-se
no olho cego
polia as palavras
e usava-as absorto
como se apalpasse
e possuísse o próprio corpo.
4.
lampião ao habitar-se
no olho cego
chorava os mortos
do seu interno,
mas o olho aberto
era casto
e via no matar
um gesto beato.
5.
camões ao habitar-se
no olho aberto
via-se todo ao inverso,
(pelo lado de fora),
mas rápido se devolvia
e fechava o olho aberto
pra ser total a miopia.
6.
lampião ao habitar-se
no olho murcho
via o olho aberto
estrábico e rústico
e compreendia
o olho aberto
mais murcho
que o olho cego.
7.
camões ao habitar-se
no olho murcho
via o mundo claro
dentro do escuro
e o olho aberto
era inútil
ao habitar-se
no olho murcho.
8.
lampião
atrás dos óculos
sentia-se acrescido, somado
e era mais lampião
naqueles óculos de aro.
9.
os óculos
lhes eram binóculos
íntimos sobre a miopia
e quando os óculos tirava
lampião se decrescia:
o olho cego somava
e o aberto diminuía.
10.
camões molhava a pena
como se no tinteiro
molhasse o olho cego
e tateando, cuidadoso
saía do seu interno.
11.
(no tinteiro as palavras
em forma líquida
juntam-se uma a uma
à retina, à pupila.)
12.
camões
escrevia com o olho cego
por senti-lo mais seu
que o olho aberto
e por poder o olho cego
infiltrar-se, ir mais dentro
e externar o seu inverso.
obs.: poema vencedor do II FestCampos
de Poesia Falada - 2000 - projeto de poesia criado em 1999 por Artur Gomes na
Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, que volta a coordená-lo neste ano de
2023 em sua XXIIIª Edição.
Manual Para Assassinar Frangos
Martinho Santafé
Às vezes, era o Rio Paraíba do Sul
que desmesuradamente crescia.
E as ruas ficavam cheias de
escorpiões,
cobras d´água, lacraias com mil
pernas...
parecia um monstro epiléptico e
barrento
numa corrida maluca até o mar.
A gente torcia para que o rio subisse
mais,
cada vez mais,
para que alguma tragédia
se consumasse, como no cinema.
Queríamos ver casas desabando,
árvores arrancadas à força,
as meninas, descalças,
impedidas de ir à missa dominical,
bêbados patinando no caos,
arrastados até a foz de Atafona,
numa infinita poça de lama e cuspe
que mandávamos para o céu.
Estávamos prenhes de vida
e queríamos a morte de mentirinha.
Sonhávamos com o apocalipse
doméstico,
com a bomba asfixiando nossos
pré-sonhos.
O primeiro amor estava ao lado,
nas aulas do Liceu que, às vezes,
assassinávamos
com delicado prazer.
No verão de 66,
o rio ficou irado de verdade,
se emputeceu, invadiu o baú
onde eu guardava meus gibis
trocados antes das matinês do Cine
Coliseu.
Adeus minha coleção
tão preciosamente inútil
de David Crocket, Buffalo Bill,
Zorro,
Rock Lane, Cavaleiro Negro e etc.
E me lembro dessa grande enchente,
da aniquilação dos pessegueiros,
das parreiras, dos limoeiros, dos
frangos,
da horta que minha avó tão bem
cuidava.
Abius, mangueiras, bananeiras,
caramboleiras, formigas,
tudo se foi com o rio,
com essa referência geográfica
e conceitual
que ainda hoje tento traduzir.
Tudo se foi com o boi morto
no meio da correnteza,
coberto de urubus.
E no radinho de pilhas de s´eu
Bertolino
(que, em uma canoa, ajudava as
famílias
a recolherem seus pertences),
os Beatles cantavam “I want a hold
your hands”.
Comecei a crescer com os Beatles
(e eles comigo),
a respeitar o rio e a temer s´eu
Leleno,
meu vizinho e flamenguista doente,
que nas tardes de domingo,
quando o seu time perdia, enfiava a
porrada
na Dorotéia, sua mulher - e maior
torcedora
do Flamengo, por motivos amplamente
justificados.
Também havia a Josete,
que ajudou a me descriar
e que tinha um namorado chamado
Jomar,
um refinado sem vergonha.
Em 62, o Brasil foi bi-campeão
e Josete imaginava
Jomar fazendo gols nela.
Se Josete gozava, o fazia
discretamente,
como os anjos gozam.
No silêncio.
Josete, que hoje é avó,
era filha de Neco Felipe,
um negro caolho e feliz,
que organizava os forrós
em Conselheiro Josino,
interior de Campos dos Goytacazes.
Forrós animados com cachaça,
lampiões,
sanfona e alguma voz desdentada,
uivando para a Lua, nas quentes
madrugadas.
Além de Neco Felipe,
conheci outras pessoas felizes
que moravam naquela vila
no verdadeiro cú do mundo,
entranhada na miséria e nos canaviais
(os dois sempre andaram juntos),
com um cemitério
na beira da estrada.
Minha cabeça
se embaralhou toda:
- como é que as pessoas
podiam ser felizes
em Conselheiro Josino ?
Como é que as pessoas
podiam ser felizes
naquela merda,
ao lado de um cemitério
mambembe,
perto de um rio carregando tudo?
Como é que as pessoas
podiam ser ?
Mas as pessoas
eram
e algumas até se
foram.
obs.: poesia vencedora do III FestCampos
de Poesia Falada - 20001- projeto de poesia criado em 1999 por Artur Gomes na
Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, que volta a coordená-lo neste ano de
2023 em sua XXIIIª Edição.
Clique no link para ver o vídeo na interpretação de Aldebaran Bastos – que
recebeu o prêmio de Melhor Intérprete do IIIº FestCampos de Poesia Falada -
2001
https://www.facebook.com/aldebaran.bastos/videos/3677343572354258
a musa
da rua formosa
carne de tapioca
farinha de mandioca
temperada com azeite
sal pimenta
nada discreta
tecida de carioca
no morro de Ibitioca
minha sede não aguenta
essa cerveja campista
nem fiado nem a vista
nem sua fórmula secreta
tem musa que não entende
a linguagem de um poeta
Artur
Gomes
https://fulinaimagens.blogspot.com/
o poema pode ser um beijo em tua boca
carne de maçã em maio
um tiro oculto sob o céu aberto
estrelas de neon em Vênus
refletindo pregos no meu peito em cruz
na paulista consolação na água branca barra funda
metal de prata desta lua que me inunda
num beijo sujo como a estação da luz
nos vídeos.filmes de TV
eu quero um clipe
nos teus seios quentes
uma cilada em tuas coxas japa
como uma flecha em tuas costas índia
ninja, gueixa eu quero a rota teu país ou mapa
teu território devastar inteiro
como uma vela ao mar de fevereiro
molhar teu cio e me esquecer na lapa
Artur Gomes
Juras Secretas
Editora Penalux – 2018
disponível para compra em www.editorapenalux.com.br/loja/juras-secretas
Alice
para Alice Melo Monteiro Gomes
A música está no bico dos pássaros
na pétala da lamparina
no caracol dos teus cabelos
no movimento dos músculos
no m das tuas mãos
nada mais sagrado
do que teus olhos acesos
para me iluminar na escuridão
Artur Gomes
O Poeta Enquanto Coisa
Editora Penalux - 2020
https://secretasjuras.blogspot.com/