segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

FestCampos de Poesia Falada - Trajetória


NÓS

Fernando Leite Fernandes

 

Senta,

Vai alta a madrugada

E não demora, a manhã vai entrar

Pelas frestas da casa,

Como leite derramado.

 

Faz tempo que dividimos a comida,

A roupa limpa,

Que contabilizamos dívidas

E regamos com zelo de parteiras,

A flor do nosso sentimento

- rara orquídea multicor –

 

Vem, senta,

As crianças dormem de janelas abertas,

Não há perigo algum,

Podemos arriar nossas espadas,

Afrouxar nossas defesas

Por instantes,

Pelo menos, até que o dia reponha suas armadilhas.

 

Olha, as nuvens são alfaias,

Mobílias do céu.

Temos um Deus nômade

Que nos defende à distância

E é impressionante essa galáxia sobre nós,

Enquanto contamos o cobre

que comprará arroz e trigo

Quando amanhecer.

- há muito que nos alimentamos

De aurora e pão –

 

Senta, esquece a lâmina do futuro,

É hora de içar as imensas velas do amor,

Espalhar no chão nossas roupas íntimas,

Mergulhar no delírio,

O mar que trazemos escondido

Há tanto tempo.

 

obs.: poesia vencedora do I FestCampos de Poesia Falada - 2000 - projeto de poesia criado em 1999 por Artur Gomes na Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, que volta a coordená-lo neste ano de 2023 em sua XXIIIª Edição.

 


Camões/Lampião

(Sérgio de Castro Pinto)

 

1.

camões ao habitar-se

no olho cego

sentia-se íntimo,

mais interno

que o habitar-se

no olho aberto.

2.

lampião ao habitar-se

nos dois olhos

a eles dividia:

o olho aberto matava

e o outro se arrependia.

 

3.

camões ao habitar-se

no olho cego

polia as palavras

e usava-as absorto

como se apalpasse

e possuísse o próprio corpo.

 

4.

lampião ao habitar-se

no olho cego

chorava os mortos

do seu interno,

mas o olho aberto

era casto

e via no matar

um gesto beato.

 

5.

camões ao habitar-se

no olho aberto

via-se todo ao inverso,

(pelo lado de fora),

mas rápido se devolvia

e fechava o olho aberto

pra ser total a miopia.

 

6.

lampião ao habitar-se

no olho murcho

via o olho aberto

estrábico e rústico

e compreendia

o olho aberto

mais murcho

que o olho cego.

 

7.

camões ao habitar-se

no olho murcho

via o mundo claro

dentro do escuro

e o olho aberto

era inútil

ao habitar-se

no olho murcho.

 

8.

lampião

atrás dos óculos

sentia-se acrescido, somado

e era mais lampião

naqueles óculos de aro.

 

9.

os óculos

lhes eram binóculos

íntimos sobre a miopia

e quando os óculos tirava

lampião se decrescia:

o olho cego somava

e o aberto diminuía.

 

10.

camões molhava a pena

como se no tinteiro

molhasse o olho cego

e tateando, cuidadoso

saía do seu interno.

 

11.

(no tinteiro as palavras

em forma líquida

juntam-se uma a uma

à retina, à pupila.)

 

12.

camões

escrevia com o olho cego

por senti-lo mais seu

que o olho aberto

e por poder o olho cego

infiltrar-se, ir mais dentro

e externar o seu inverso.

 

obs.: poema vencedor do II FestCampos de Poesia Falada - 2000 - projeto de poesia criado em 1999 por Artur Gomes na Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, que volta a coordená-lo neste ano de 2023 em sua XXIIIª Edição.


Manual Para Assassinar Frangos

                             Martinho Santafé

 

Às vezes, era o Rio Paraíba do Sul

que desmesuradamente crescia.

E as ruas ficavam cheias de escorpiões,

cobras d´água, lacraias com mil pernas...

parecia um monstro epiléptico e barrento

numa corrida maluca até o mar.

 

A gente torcia para que o rio subisse mais,

cada vez mais,

para que alguma tragédia

se consumasse, como no cinema.

 

Queríamos ver casas desabando,

árvores arrancadas à força,

as meninas, descalças,

impedidas de ir à missa dominical,

bêbados patinando no caos,

arrastados até a foz de Atafona,

numa infinita poça de lama e cuspe

que mandávamos para o céu.

 

Estávamos prenhes de vida

e queríamos a morte de mentirinha.

 

Sonhávamos com o apocalipse doméstico,

com a bomba asfixiando nossos

pré-sonhos.

 

O primeiro amor estava ao lado,

nas aulas do Liceu que, às vezes,

assassinávamos

com delicado prazer.

 

No verão de 66,

o rio ficou irado de verdade,

se emputeceu, invadiu o baú

onde eu guardava meus gibis

trocados antes das matinês do Cine Coliseu.

 

Adeus minha coleção

tão preciosamente inútil

de David Crocket, Buffalo Bill, Zorro,

Rock Lane, Cavaleiro Negro e etc.

 

E me lembro dessa grande enchente,

da aniquilação dos pessegueiros,

das parreiras, dos limoeiros, dos frangos,

da horta que minha avó tão bem cuidava.

 

Abius, mangueiras, bananeiras,

caramboleiras, formigas,

tudo se foi com o rio,

com essa referência geográfica

e conceitual

que ainda hoje tento traduzir.

 

Tudo se foi com o boi morto

no meio da correnteza,

coberto de urubus.

 

E no radinho de pilhas de s´eu Bertolino

(que, em uma canoa, ajudava as famílias

a recolherem seus pertences),

os Beatles cantavam “I want a hold your hands”.

 

Comecei a crescer com os Beatles

(e eles comigo),

a respeitar o rio e a temer s´eu Leleno,

meu vizinho e flamenguista doente,

que nas tardes de domingo,

quando o seu time perdia, enfiava a porrada

na Dorotéia, sua mulher - e maior torcedora

do Flamengo, por motivos amplamente justificados.

 

Também havia a Josete,

que ajudou a me descriar

e que tinha um namorado chamado Jomar,

um refinado sem vergonha.

 

Em 62, o Brasil foi bi-campeão

e Josete imaginava

Jomar fazendo gols nela.

 

Se Josete gozava, o fazia discretamente,

como os anjos gozam.

 

No silêncio.

 

Josete, que hoje é avó,

era filha de Neco Felipe,

um negro caolho e feliz,

que organizava os forrós

em Conselheiro Josino,

interior de Campos dos Goytacazes.

Forrós animados com cachaça, lampiões,

sanfona e alguma voz desdentada,

uivando para a Lua, nas quentes

madrugadas.

 

Além de Neco Felipe,

conheci outras pessoas felizes

que moravam naquela vila

no verdadeiro cú do mundo,

entranhada na miséria e nos canaviais

(os dois sempre andaram juntos),

com um cemitério

na beira da estrada.

 

Minha cabeça

se embaralhou toda:

- como é que as pessoas

podiam ser felizes

em Conselheiro Josino ?

 

Como é que as pessoas

podiam ser felizes

naquela merda,

ao lado de um cemitério

mambembe,

perto de um rio carregando tudo?

 

Como é que as pessoas

podiam ser ?

 

Mas as pessoas

eram

e algumas até se

foram.

 

obs.: poesia vencedora do III FestCampos de Poesia Falada - 20001- projeto de poesia criado em 1999 por Artur Gomes na Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, que volta a coordená-lo neste ano de 2023 em sua XXIIIª Edição.

 

Clique no link para ver o vídeo na interpretação de Aldebaran Bastos – que recebeu o prêmio de Melhor Intérprete do IIIº FestCampos de Poesia Falada - 2001

https://www.facebook.com/aldebaran.bastos/videos/3677343572354258




 

a musa da rua formosa

 

carne de tapioca

farinha de mandioca

temperada com azeite

sal pimenta

nada discreta

tecida de carioca

no morro de Ibitioca

minha sede não aguenta

essa cerveja campista

nem fiado nem a vista

nem sua fórmula secreta

tem musa que não entende

a linguagem de um  poeta

 

Artur Gomes

https://fulinaimagens.blogspot.com/



 SampleAndo



o poema pode ser um beijo em tua boca
carne de maçã em maio
um tiro oculto sob o céu aberto
estrelas de neon em Vênus
refletindo pregos no meu peito em cruz

na paulista consolação na água branca barra funda
metal de prata desta lua que me inunda
num beijo sujo como a estação da luz

nos vídeos.filmes de TV
eu quero um clipe
nos teus seios quentes
uma cilada em tuas coxas japa
como uma flecha em tuas costas índia
ninja, gueixa eu quero a rota teu país ou mapa

teu território devastar inteiro
como uma vela ao mar de fevereiro
molhar teu cio e me esquecer na lapa

Artur Gomes

Juras Secretas
Editora Penalux – 2018

disponível para compra em www.editorapenalux.com.br/loja/juras-secretas




Alice

para Alice Melo Monteiro Gomes

 

A música está no bico dos pássaros

na pétala da lamparina

no caracol dos teus cabelos

no movimento dos músculos

no m das tuas mãos

nada mais sagrado

do que teus olhos acesos

para me iluminar na escuridão

 

Artur Gomes

O Poeta Enquanto Coisa

Editora Penalux - 2020

https://secretasjuras.blogspot.com/

 

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