Que moça que moça?
Que moça é essa, que moça
que fincou estardalhaços
numa carne de maçã
num pecado de chumaços
amassado de manhã
que me deixou nos espaços?
quem reinou sobre meu fel
em papéis e desamassos
brandindo cada escarcéu
em olhares aos pedaços?
que moça é essa, que moça
que cortou os meus espaços?
que moça é essa, que moça
que derreteu meus bagaços
arrancou minha alma pura
ressecada de embaraços
que moça é essa, que moça
que me deixou nos espaços?
a moça é feita de rua
costurada em romaria
a moça é de carne crua
a moça é de ventania.
por meus olhares devassos:
é uma moça toda nua
que me deixou nos espaços?
Depois falo de Vinícius
Se eu te entregar a noite
o que faço do meu corpo?
Se eu te deixar meu corpo
o que vou dizer da noite?
São os entraves do mundo
as calças que me acobertam
São as varas que me abatem
e mordem meu sacrifício.
Só bebo meu vinho amargo
só estranho o pão e o trigo
que passam pelo meu olho
e esmagam meu espaço.
A poesia que me arranca
teu braço que me sustenta
a vida que me debate
a fome que me ilumina.
Quanto vou morrer agora
se no teto já caído
a sombra da tempestade
faz a carne desabar?
Quanto tempo tenho ainda?
Poema 1
No princípio criou deus o mundo
e o homem derramou-se tempestade.
No princípio o verbo se fez fundo
e o homem habitou calamidade.
Quantos de vós, obreiros desta terra
fizeram-se irmãos depois da guerra?
Muitas estradas andei e nunca vi
o tempo e as estradas que perdi.
A cara que me põe enclausurado
é a mesma que arranca o meu estado
de leis e vendas, de olhos tão eternos
que fosse eu um filho dos infernos.
Habitei loucos e rasguei placentas.
O mundo é mais cruel do que inventas.
Romério Rômulo
ando tendo que
aprender e aceitar
que algumas
boas frutas
vão cair e apodrecer no chão,
(longe ou perto dos olhos)
e meus velhos pés
não vão correr
para acolher ou vivenciá-las
vou consentindo
a presença da rachadura na parede
que vai larga, alta
constatando o desabamento
e mesmo assim abandonando
o pensamento
renunciando do agir
vou compreendendo, não sem dificuldade,
que a pia pinga sozinha
que um dos gatos ficou manco depois de cair da
árvore
que algum cachorro destroçou os sacos de lixo na
estrada
e as embalagens vazias passaram a compor os
acostamentos
os transeuntes não têm mais forças para se
abaixar
e limpar os mundos
e nem eu, e nem eu
(é tempo de não fazer grandes listas
e feitos)
é tempo de olhar para as coisas sem interagir
com elas
é tempo de deixar que ajam os tempos inumanos
longe das minhas mãos sistêmicas
até que os míseros olhos
percam as atenções das rachaduras
ausentes, desperdiçados
nos borrões da história
e se aceitem parte do amarelo das folhas
da suculência da manga adentrando o chão
e da sabedoria (mais antiga do que nós)
das ferrugens nas fechaduras e nos ossos
como ir pela direita
se a vida é torta...
e não importa...
podem querer
retificar a veia curva,
artística,
fechar a porta
mas se desviar
a artéria
ela já não pulsa,
ela jorra
vermelho
sangue
em mãos
verdeamarelas
já olhei de viés
pela direita
mas é só abrir a janela
e os retratos são de luta
quebram as ruas
as avenidas
realidades
mais injustas
que mancham
qualquer
e toda
a nossa
velha história
não, não sei fabricar o sol
mas sei ouvir o chamado
e encontrar os caminhos
da nova alvorada
não sei inventar o sol
(bem que tentei algumas vezes)
mas sei aceitar as noites
e permanecer no escuro
até que meus olhos
clamem por luz
não sei recriar o sol
que deixou de existir ali
mas bem que já percebi
que minhas mãos
teimosas e insistentes
são incapazes de cunhar
astros livres
não sei fabricar o sol
e não gosto da escuridão
só posso então
pacientemente
abrir o peito
na ventura de seu
imprevisível
advento
Clara Baccarin é poeta do interior paulista, há quatro anos mora da cidade de Monteiro
Lobato. Formada em Letras e mestre em Estudos Literários pela Unesp, publicou
os livros: Castelos Tropicais (romance, Editora Chiado), Instruções para Lavar
a Alma (poesia, publicação independente), Vibração e Descompasso (crônicas,
Editora Laranja Original). Seu livro Instruções para Lavar a Alma recebeu o
prêmio Guarulhos de Literatura 2017. Em maio de 2019, lançou seu segundo livro
de poemas, Vísceras (Editora Patuá), contemplado com o edital de poesia do
ProaC.
CALEIDOSCÓPIO
O poema algumas vezes
aparece como o céu carrancudo
sem sol, sem lua e sem estrelas
com a cara fechada e pavio curto.
O poema algumas vezes
aparece romântico e suave
leve feito espuma bem macio
voando como pássaro ou aeronave.
O poema algumas vezes
aparece meigo, terno e afetuoso
com sabor de mel na canção
melódico e sereno, com jeito carinhoso.
O poema algumas vezes
entra no jogo chave
joga mal e perde muitos gols
a bola só bate na trave.
O poema algumas vezes
aparece feroz na mensagem
bicho solto como uma pantera
animal rústico fera selvagem.
O poema algumas vezes
aparece na balbúrdia de boca suja
abusado, erótico e sensual
mete o pau na garatuja.
O poema algumas vezes
aparece longo, pesado e bravo
com uma metralhadora na mão
para fazer uma nova nação!
RESTOS DOS SONHOS
Hoje tive um sonho cerrado
de derrubar todos os muros
acordei com a cara e coragem
de inventar outros futuros.
Com a marreta da linguagem
gravada num baú de experiências
nos escombros amontoados do tempo
é arte contra barbárie das violências.
No silêncio barulhento das ruas
atravesso o Rio sem medo/
e naufragar na Baía de Guanabara
e afogar meu poema segredo.
Porque não tem água que mereça
o cuspir a língua de fogo
para incendiar a solidão do tédio/
e secar o fino desejo do corpo.
Guardei o canto de amor no peito
no sussurro de uma caburé de orelha
o resto é pedaços de vida em conceito
como a paixão por uma rosa vermelha.
Sady Bianchin
às vezes
o substantivo carece
de mais substantivos
o verbo de verbos
verbos de advérbios
as palavras fazem crescer o mundo
mas a língua não é a realidade
nem a arte se assemelha à natureza
criam outra
realidade que expande a realidade
(às vezes)
no branco da página
Aricy Curvello
do livro 50 poemas escolhidos
Edições Galo Branco
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