sábado, 11 de março de 2023

múltiplas poéticas


 Que moça que moça?


Que moça é essa, que moça
que fincou estardalhaços
numa carne de maçã
num pecado de chumaços
amassado de manhã
que me deixou nos espaços?

quem reinou sobre meu fel
em papéis e desamassos
brandindo cada escarcéu
em olhares aos pedaços?

que moça é essa, que moça
que cortou os meus espaços?

que moça é essa, que moça
que derreteu meus bagaços
arrancou minha alma pura
ressecada de embaraços

que moça é essa, que moça
que me deixou nos espaços?

a moça é feita de rua
costurada em romaria
a moça é de carne crua
a moça é de ventania.

por meus olhares devassos:
é uma moça toda nua
que me deixou nos espaços?

Depois falo de Vinícius

Se eu te entregar a noite
o que faço do meu corpo?
Se eu te deixar meu corpo
o que vou dizer da noite?

São os entraves do mundo
as calças que me acobertam
São as varas que me abatem
e mordem meu sacrifício.

Só bebo meu vinho amargo
só estranho o pão e o trigo
que passam pelo meu olho
e esmagam meu espaço.

A poesia que me arranca
teu braço que me sustenta
a vida que me debate
a fome que me ilumina.

Quanto vou morrer agora
se no teto já caído
a sombra da tempestade
faz a carne desabar?

Quanto tempo tenho ainda?

Poema 1

No princípio criou deus o mundo
e o homem derramou-se tempestade.
No princípio o verbo se fez fundo
e o homem habitou calamidade.
Quantos de vós, obreiros desta terra
fizeram-se irmãos depois da guerra?
Muitas estradas andei e nunca vi
o tempo e as estradas que perdi.
A cara que me põe enclausurado
é a mesma que arranca o meu estado
de leis e vendas, de olhos tão eternos
que fosse eu um filho dos infernos.

Habitei loucos e rasguei placentas.
O mundo é mais cruel do que inventas.

Romério Rômulo


 

ando tendo que aprender e aceitar

que algumas boas frutas
vão cair e apodrecer no chão,
(longe ou perto dos olhos)
e meus velhos pés
não vão correr
para acolher ou vivenciá-las

vou consentindo
a presença da rachadura na parede
que vai larga, alta
constatando o desabamento
e mesmo assim abandonando
o pensamento
renunciando do agir

vou compreendendo, não sem dificuldade,
que a pia pinga sozinha
que um dos gatos ficou manco depois de cair da árvore
que algum cachorro destroçou os sacos de lixo na estrada
e as embalagens vazias passaram a compor os acostamentos
os transeuntes não têm mais forças para se abaixar
e limpar os mundos
e nem eu, e nem eu

(é tempo de não fazer grandes listas
e feitos)

é tempo de olhar para as coisas sem interagir com elas

é tempo de deixar que ajam os tempos inumanos
longe das minhas mãos sistêmicas
até que os míseros olhos
percam as atenções das rachaduras
ausentes, desperdiçados
nos borrões da história

e se aceitem parte do amarelo das folhas
da suculência da manga adentrando o chão
e da sabedoria (mais antiga do que nós)
das ferrugens nas fechaduras e nos ossos

como ir pela direita
se a vida é torta...

e não importa...
podem querer
retificar a veia curva,
artística,
fechar a porta

mas se desviar
a artéria
ela já não pulsa,
ela jorra

vermelho
sangue
em mãos
verdeamarelas

já olhei de viés
pela direita
mas é só abrir a janela
e os retratos são de luta
quebram as ruas
as avenidas
realidades
mais injustas

que mancham
qualquer
e toda
a nossa
velha história

não, não sei fabricar o sol

mas sei ouvir o chamado
e encontrar os caminhos
da nova alvorada

não sei inventar o sol
(bem que tentei algumas vezes)
mas sei aceitar as noites
e permanecer no escuro
até que meus olhos
clamem por luz

não sei recriar o sol
que deixou de existir ali
mas bem que já percebi
que minhas mãos
teimosas e insistentes
são incapazes de cunhar
astros livres

não sei fabricar o sol
e não gosto da escuridão
só posso então
pacientemente
abrir o peito
na ventura de seu
imprevisível
advento


Clara Baccarin
é poeta do interior paulista, há quatro anos mora da cidade de Monteiro Lobato. Formada em Letras e mestre em Estudos Literários pela Unesp, publicou os livros: Castelos Tropicais (romance, Editora Chiado), Instruções para Lavar a Alma (poesia, publicação independente), Vibração e Descompasso (crônicas, Editora Laranja Original). Seu livro Instruções para Lavar a Alma recebeu o prêmio Guarulhos de Literatura 2017. Em maio de 2019, lançou seu segundo livro de poemas, Vísceras (Editora Patuá), contemplado com o edital de poesia do ProaC.


 

CALEIDOSCÓPIO

O poema algumas vezes
aparece como o céu carrancudo
sem sol, sem lua e sem estrelas
com a cara fechada e pavio curto.

O poema algumas vezes
aparece romântico e suave
leve feito espuma bem macio
voando como pássaro ou aeronave.

O poema algumas vezes
aparece meigo, terno e afetuoso
com sabor de mel na canção
melódico e sereno, com jeito carinhoso.

O poema algumas vezes
entra no jogo chave
joga mal e perde muitos gols
a bola só bate na trave.

O poema algumas vezes
aparece feroz na mensagem
bicho solto como uma pantera
animal rústico fera selvagem.

O poema algumas vezes
aparece na balbúrdia de boca suja
abusado, erótico e sensual
mete o pau na garatuja.

O poema algumas vezes
aparece longo, pesado e bravo
com uma metralhadora na mão
para fazer uma nova nação!

RESTOS DOS SONHOS

Hoje tive um sonho cerrado
de derrubar todos os muros
acordei com a cara e coragem
de inventar outros futuros.

Com a marreta da linguagem
gravada num baú de experiências
nos escombros amontoados do tempo
é arte contra barbárie das violências.

No silêncio barulhento das ruas
atravesso o Rio sem medo/
e naufragar na Baía de Guanabara
e afogar meu poema segredo.

Porque não tem água que mereça
o cuspir a língua de fogo
para incendiar a solidão do tédio/
e secar o fino desejo do corpo.

Guardei o canto de amor no peito
no sussurro de uma caburé de orelha
o resto é pedaços de vida em conceito
como a paixão por uma rosa vermelha.

Sady Bianchin


às vezes

o substantivo carece
de mais substantivos

o verbo de verbos
verbos de advérbios

as palavras fazem crescer o mundo
mas a língua não é a realidade
nem a arte se assemelha à natureza

criam outra
realidade que expande a realidade
(às vezes)
no branco da página

Aricy Curvello

do livro 50 poemas escolhidos
Edições Galo Branco


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